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Direito, gestão e esportes

Direito, gestão e esportes

por Higor Maffei Bellini

 

A recente decisão da 2ª Vara Regional de Competência Empresarial do TJSP, que suspendeu as sanções aplicadas pela CBF a um clube em recuperação judicial, pode ter consequências muito mais profundas do que aparenta. Se mantida e transformada em entendimento consolidado, corre-se o sério risco de tornar letra morta as disposições da FIFA e da CNRD que obrigam os clubes a cumprirem suas obrigações financeiras reconhecidas em seus tribunais arbitrais, sob pena de punições esportivas.

Esses mecanismos sancionatórios não foram criados por acaso. Eles são o coração da estrutura de governança global do futebol, voltados a garantir que contratos sejam honrados e que a inadimplência não se transforme em vantagem competitiva. A previsibilidade do sistema da FIFA — replicado pela CNRD no Brasil — é o que sustenta a credibilidade do ambiente esportivo, nacional e internacionalmente. Ao suspender essas sanções, a decisão judicial enfraquece não apenas o poder normativo das entidades, mas também a segurança jurídica dos atletas, agentes e clubes que confiam nesses mecanismos arbitrais.

É evidente que nenhuma entidade administrativa pode se sobrepor ao poder jurisdicional do Estado, especialmente no âmbito da recuperação judicial. No entanto, é igualmente verdadeiro que o respeito à ordem concursal não pode ser utilizado como escudo absoluto para a inadimplência. O que está em jogo é o equilíbrio entre o princípio da paridade entre credores e a autonomia do direito desportivo de punir quem descumpre decisões arbitrais. E, neste caso, o que se deve evitar é que uma liminar judicial acabe por inviabilizar toda a arquitetura de cumprimento de decisões que sustenta o futebol organizado.

O argumento central da decisão — de que todos os credores devem ser tratados de forma igualitária — é juridicamente correto, mas sua aplicação automática ao contexto esportivo gera um paradoxo. Afinal, se um atleta tem um crédito reconhecido pela Justiça do Trabalho, e outro tem um crédito reconhecido pela CNRD ou pela FIFA, ambos são, em essência, titulares de direitos de natureza obrigacional contra o mesmo clube. Não há fundamento lógico ou jurídico para que o segundo seja tratado com privilégio apenas porque a entidade esportiva ameaça o clube com sanções como proibição de registro, perda de pontos ou rebaixamento.

Permitir esse desequilíbrio cria um sistema paralelo de preferência indevida, no qual um credor recebe não pela força do seu direito, mas pelo temor que o clube tem de sofrer punições administrativas. Isso distorce completamente o princípio do concurso universal de credores, que é a base de qualquer recuperação judicial ou regime de centralização de execuções. Todos devem ser tratados sob as mesmas condições, respeitando-se o plano aprovado ou a ordem de pagamento judicialmente fixada.

Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que a decisão ameaça a coerência internacional do sistema desportivo. A FIFA exige que as federações nacionais assegurem a execução de suas decisões arbitrais, sob pena de sanções às próprias entidades filiadas. Assim, a suspensão sistemática das punições impostas pela CNRD no Brasil pode colocar o país em situação de desconformidade com o regulamento global, afetando inclusive a participação de clubes brasileiros em competições internacionais.

Em última análise, se prevalecer a tese de que nenhuma sanção administrativa pode ser aplicada durante a recuperação judicial, o resultado prático será a inviabilização completa do sistema arbitral esportivo. As decisões da CNRD e da FIFA perderão eficácia coercitiva, e o inadimplemento passará a ser, paradoxalmente, uma estratégia de sobrevivência financeira temporária para clubes em crise.

O caminho do equilíbrio não é o de suprimir as regras esportivas, mas o de harmonizá-las com o direito concursal. A recuperação judicial deve proteger a empresa-clube contra execuções desordenadas, mas não pode se converter em instrumento de blindagem contra as responsabilidades desportivas assumidas de boa-fé. O verdadeiro espírito do concurso de credores é o de assegurar justiça entre todos — e não criar privilégios baseados no medo das punições esportivas.